19/09/2010

Aroma

Senti o cheiro da tristeza quando ela passou por mim. E por incrível que pareça, a tristeza não fede. Tem um cheiro de hortelã quente com canela ao fundo. Não é como aquele vento de grama molhada em um domingo chuvoso, é mais doce. Tão leve que quase não se sente, mas quando sente não se esquece, impregnante. A diferença entre um perfume natural e outro francês. Cada um com sua própria nostalgia. Mas o segundo é só, por isso tão forte, luta para manter-se grudado à pele de alguém que lhe dê sentido.

Uma mistura de nada com coisa alguma. Vestido na altura dos joelhos. Sem decote, sem cor, sem corte, sem graça. Um bom dia, seguido por um sorriso fosco. Já vi lágrimas bem mais felizes que aqueles dentes. Uma sacola maior do que as mãos dela pareciam capazes de levantar. Talvez tão pesada quanto as lágrimas engolidas que ela carregava. Uns olhos claros, escurecidos pela falta de graça, pela falta do que olhar. Já assisti olhares vagos, ocupados demais com os próprios eus para reparar nos outros. É que às vezes, o lado de dentro chama mais nossa atenção do que o de fora. Não é egocentrismo, apenas autoconhecimento. Todo mundo tem um mundo próprio e intransferível por trás dos olhos. Ela não tinha. Nada.

Pelas pupilas pude chegar até a alma, flutuante meio ao vácuo interior. Vazio de motivo. Era uma alma desnutrida e amarela de tão desbotada. O andar arrastado deixava claro que não tinha roteiro a seguir. Nem teria força para seguir por conta própria para onde quer que fosse. Suas energias eram suficientes para seguir seguindo, pelo caminho mais reto, mais conveniente.

Alguns são insuficientes para si mesmos. A dor da solidão é a prova de quem não suporta mais a própria presença. É preciso um terceiro alguém. Alguém entre o que se é e o que se sente. Que lhe permita esquecer que ele mesmo ainda está alí. Alguém para apoiar-se, para depender, para ser. Era tão só, que nem ela se servia de companhia.

Não sabia o quanto era infeliz.
Não senti pena, e sim medo. Medo de hortelã e canela.

8 comentários:

  1. "É que às vezes, o lado de dentro chama mais nossa atenção do que o de fora. Não é egocentrismo, apenas autoconhecimento. Todo mundo tem um mundo próprio e intransferível por trás dos olhos. Ela não tinha. Nada."

    ta muito bom vaquinha, palavra de honra =)

    fernanda

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  2. Só teus óculos de poesia para enxergarem tanta coisa pelo espaço de um bom dia. Dizem que os olhos são as janelas da alma... mas pelo teu medo final, fiquei pensando se além de janela, eles não são um pouco espelho também.

    Lindo, Feto!

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  3. parece a Macabéa de Clarice Lispector.
    e o mundo está mesmo cheio de Macabéas...

    pobre de nós.

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  4. "É que às vezes, o lado de dentro chama mais nossa atenção do que o de fora. Não é egocentrismo, apenas autoconhecimento."
    "Suas energias eram suficientes para seguir seguindo, pelo caminho mais reto, mais conveniente."
    É, simplesmete, brilhante!

    Sempre axei que precisasse de um espelho pra refletir minha imagem. Agora não mais. Me vi em cada linha, em cada vírgula. A empatia foi inevitável.

    .privado. xD

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  5. lindo, lindo, lindo.
    fui obrigada a comentar depois de ler isso:
    "Alguns são insuficientes para si mesmos. A dor da solidão é a prova de quem não suporta mais a própria presença. É preciso um terceiro alguém. Alguém entre o que se é e o que se sente."
    me alertando mesmo sem querer haha.
    Jéssica Monteiro

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  6. "A dor da solidão é a prova de quem não suporta mais a própria presença"

    Depois disso acho que vou abondonar o meu posto de "dr. solidão"... hahaha

    Sabe do que lembrei marcita??? Do Jean-Baptiste Grenouille de Perfume... Sim, eu li!rsrs Esqueci de te dizer, mas em algum momento desse ano finalmente consegui ler. Fiquei muito impressionado com a forma viva e sensitiva com que o autor falava sobre o mundo dos odores, cheiros e fragrâncias... que não tem nada de realidade paralela, pois embora geralmente não prestemos tanta atenção, esse é o nosso mundo apresentado segundo fios de sensibilidade.

    Acabei de ver esses fios por aqui. Ainda não havia pensado o lado triste e desesperador da solidão partindo de aromas. A tristeza tem um cheiro... que bacana isso Márcia! Imagine só... podemos nos perguntar a despeito do momento em que ele é fabricado... dos seus componentes... e, sobretudo, por quem é sentido. Quero dizer, o observador sentiu o cheiro da moça. Mas e ela? Será que também sentia? Será que temos essa capacidade de sentirmos os nossos cheiros antes que qualquer um? Ou será que somos como o Grenouille que precisava roubar cheiros alheios para se reconhecer? Enfim... acho que to viajando ja... rsrsrs

    Escrever sobre tudo isso não é muito fácil. Você o fez com talento e suavidade. Gostei! Obrigado pela dica! De repente minha manhã de domingo ganhou um aroma de reflexão muito agradável... não é de hortelã com canela... sinto cheiro de cupuaçu com leite condensado... mas deve ser o creme que minha mãe está fazendo!rsrs

    bjão!!!

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  7. Márcia,
    Acabei de ler "Aroma" e estou positivamente impressionada. O texto é lindo, muito lírico mesmo e de uma fluência que me deixa admirada.
    Eu diria que é uma prosa poética das melhores que já vi, com uma qualidade até mesmo incomum.
    Parabéns pelo belíssimo texto.
    E obrigada por tê-lo feito e assim me permitir a possibilidade de ler algo tão maravilhoso.
    Beijos
    Rita

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  8. Com tantos poetas no NAJUP, poderíamos fazer um sarau regado a vinho, violão e poesias alheias (escritas pelos participantes), o que achas?

    Teus textos devem ficar ainda mais belos quando lidos sob o efeito do álcool.:)

    Parabéns por ter posto no mundo mais esta obra de arte.

    beijo!

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