09/08/2010

Strawberry Fields Forever


Meus queridos,

Saibam que nenhuma tristeza seria capaz de me persuadir a desistir da vida. Foi a luz que me guiou. Meu corpo calejado pede descanso. Minhas pernas doem toda manhã. Minha coluna não tem mais força para me manter elegante. Minhas mãos tremem. Minha mente não segue atormentada como na maioria dos casos. Ao contrário, ela anda tão limpa que nem parece ter tomado uma decisão tão definitiva. Minhas vontades nunca foram tão claras.
Não posso garantir certezas, arrependimentos sempre são possíveis. Mas é muito mais importante arriscar. Melhor a certeza sensata que nada é certo. Se o fosse, que sentido teria acordar? Peço que me deixem dormir, o que não me impedirá de ter sonhos. Nunca me senti tão dona do meu ar. Quanto mais aceito a morte, mais viva me sinto.
Meus muitos anos me ensinaram a reconhecer o melhor momento de me retirar. É apenas isso. Vou ceder meu espaço no mundo, entrego meu corpo em troca da liberdade de minha mente. Ela segue, nômade e jovem. Sem dores. Entrego-me ao cansaço antes que meu corpo se torne debilitado ao ponto de cansar meus amores. Não quero vê-los chorar. E não estarei aqui para enxugar suas lágrimas. Se me permito ir é porque sei que existem muitas boas mãos espalhadas por aqui. Cuidarão de vocês. Lembrem que são lágrimas desnecessárias, mas entendo o quanto são inevitáveis. Eu também já chorei muitas vezes em vão, o que me rendeu algumas rugas a mais.
Acho que cumpri meus deveres. Saciei minhas vontades. Não que eu julgue ter vivido o suficiente, impossível esgotar a vida. Tantos sonhos que eu só sonhei. Alguns nem me recordo mais. Por isso quero parar, não quero mais esquecer. O mundo é tão infinito, não cabe em uma vida. As possibilidades são tantas. Vou sentir saudade de caminhar por aí. Dos sabores, gestos, toques, vozes. Ah, a música! Será que existe música do outro lado? Se eu pudesse levar alguma coisa daqui, levaria umas gotas do mar, umas notas de violão, um livro de sonetos e um vidrinho pra guardar o cheiro dos cabelos de minha neta. Isso me bastaria pela eternidade. Ah! Não posso esquecer o gosto dos morangos, daria um jeito de levar um pé de morango comigo para onde eu fosse. Umas gargalhadas do meu filho, uns beijos do meu falecido marido, uma dança e algumas fotos. Acabaria levando o mundo inteiro! Tudo aqui é apaixonante demais.
Queria poder concentrar tudo em um gole de café. Como o que tomamos mais cedo na varanda. Nosso último momento em vida juntos. Cada minuto dele me fez ter mais certeza que estamos prontos. O queijo nunca derreteu de forma mais suculenta como hoje. Ah, e contem ao padeiro o quanto eu me deliciei com aquele bolinho de tapioca! Nunca rimos por tão pouco. E vocês nunca estiveram tão lindos. É assim que vou me lembrar do mundo durante minha eternindade. Vou sentir falta, mas não sofrerei. Saudade, não se torturem ao senti-la. A saudade é bonita, é a certeza do que foi bom, nos permite lembrar.
Já passei da idade de dar satisfações, não tentarei explicar motivos, eles não são importantes. Só quero ter a certeza que vocês conseguirão ver o sorriso nos meus lábios quando terminarem de me ler.

Com amor,
Dulce.

7 comentários:

  1. Márcia,

    Dulce é um pseudônimo teu, ou é alguma escritora consagrada que eu não conheço? Me solucione o mistério, pois eu achei muito fina essa melancolia descritiva. A leitura foi uma delícia.

    "Neste mundo haveria menos sofrimento se os homens (só Deus sabe porque eles são assim!) não se ocupassem, com tanta imaginação, em fazer voltar as lembranças das dores passadas, em veez de suportar um presente tolerável" (J. W. Goethe, em "Os sofrimentos do jovem Werther)

    Guilherme

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  2. Pseudônimo. Uma velhina que faz parte de mim :) Eu e ela ficamos muito felizes de vc ter saboreado o texto rsrs. Bjão


    obs: vou procurar ler "Os sofrimentos do jovem Werther" *_*

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  3. "caráio véio!!!!"

    eeei pow... *-*

    parabéns vaquinha, SÉRIO!!

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  4. "Meus muitos anos me ensinaram a reconhecer o melhor momento de me retirar. É apenas isso. Vou ceder meu espaço no mundo, entrego meu corpo em troca da liberdade de minha mente." *-*

    ei pow esse foi um dos textos mais lindos q tu ja fez!!!

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  5. Concordo plenamente com a Fê, é um dos mais lindos, de verdade. Não acredito que ainda não tinha lido antes. Minha vida anda tão atarefada que fazia tempo que eu não tirava um tempo para dar uma lida nesses blogs que acalantam meu coração. Muito tenho a aprender com a Dona Dulce. Lindo, lindo texto... ela me lembrou um tanto a Úrsula do Gabriel Garcia Marquez. Não sei por que, exatamente...

    Amei, Feto. Obrigado por esse texto!

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