08/04/2010

A noite anterior





Eu queria saber desenhar para captar melhor. Talvez a palavra não os faça ver a poesia daquela cena.

Um homem, um copo e uma dor. A métrica é impressionante, tudo se encaixa harmoniosamente. Letra por letra, imagem por imagem. O barulho do gelo contra o copo rima com a gravata folgada sem cerimônias. A calça social que cobre os tornozelos. O cinto desafivelado. O cabelo "perfeitamente bagunçado." Os sapatos jogados no entrar da porta. A meia fina e escorregadia que o protege contra o chão gelado.

O corpo desequilibrado tem dificuldade de ir da bancada da cozinha até a sala, são apenas três passos inseguros. As mãos ocupadas não podem segurar as paredes que se movem ameaçadoras na direção dele. Na esquerda segura o copo, quase vazio depois do último gole. Na direita a garrafa, "o whisky é o melhor amigo do homem". Deixou seus amigos na mesa de centro e arrancou a camisa depois de se convencer que não conseguiria desabotoa-la civilizadamente.

Só não entende porque aquele maldito jarro de vidro insiste em ficar bem à sua frente. Por mais que ele desvie, o desgraçado o segue incansável. Acaba por espatifa-lo. O corpo, sem aviso, joga-se no sofá macio. Ele não percebe, mas a meia não consegue estancar o sangue derramado por um pedaço vingativo do jarro quebrado. O sofá ganha uma mancha grande e escura. Talvez por isso ele não foi tão receptivo quanto se esperava. No meio de sua maciez algo sólido lhe machuca a nuca. Controle remoto. Remoto controle. Alguém já fez esse trocadilho um dia. Ele teria ligado a TV 52 polegas presa à parede, mas o botão fugiu dos seus dedos, acabou desistindo.

Pelo visto o apartamento inteiro tirara a noite para se revoltar contra ele. Não só o apartamento, como o dia em si, como 24h podem ser tão cruéis? Perdi muita coisa em muito pouco tempo. E agora não consigo nem alcançar o copo na mesinha de centro. Meu gelo derretendo. O mundo rodando mais rápido do que o habitual. E a foto na parede sorrindo cinicamente. Desgraçados! Caiu no sono alí mesmo, com o braço jogado para fora do sofá e a boca aberta. A dor só se apresentará na manhã do dia seguinte.

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