29/05/2010

Rotina




E a rotação se completou. Os raios começaram a invadir entre as nuvens escondidas pela sombra. O preto virou azul escuro, que virou azul claro, que virou dia. Os contornos do mundo foram sendo iluminados e o que era penumbra virou luz. O canto acompanhava o processo. O som da madrugada virando manhã chega a ser mitológico. Uma orquestra desengonçada e apaixonante de pássaros cativantes.

Quando percebeu os primeiros raios, correu pra cama e de joelhos abriu a janela. Deitou com os pés apoiados no para-peito. Não fechou os olhos. Arregalou-os para ver com mais precisão cada segundo de mudança de tonalidade. Imitava um dos pássaros com o assobio. O costume de ouvi-lo diariamente a ensinou. Desligou o ar condicionado, com aquele vento úmido entrando pela janela não era preciso usar-se de artificialidades. E quando a Lua finalmente desaparecereu, levantou da cama e arrastou o lençol até a cozinha. Esquentou o leite, misturou-o ao chocolate, cortou um pedaço do bolo guardado na geladeira. E a orquestra prosseguia. Naquele anil cobrindo o teto do mundo. Aquele orvalho. Aquela felicidade preguiçosa e sem compromisso.

Sentada na escrivaninha com a caneca colorida, lembrança de uma eterna doce amizade, preencheu a página do dia anterior, aquela mania de confessar ao papel os sentidos de todos os dias. De avaliar se valera a pena. De registrar o que um dia deixaria saudade. De ler a si mesma em cada página. Talvez fosse apenas medo de esquecer. De ser esquecida. Cuidem das minhas partes, minha mente vale mais que meu corpo.

Terminado o bolo e as palavras, pegou o livro na cabeceira. Jogou-se no sofá e o abriu em um pouco mais que a metade. Até o sol esquentar o teria terminado. Acabou adormecendo com o livro sobre si virado na última página. Não chegou a ler o final. Mas fechara os olhos com a certeza que seria um bom final. Talvez um bom começo. Mais um começo do ritual. Essa coisa estranha que apelidaram de vida.

2 comentários:

  1. =O uma das rotinas mais apaixonantes já escritas. e por alguém que visivelmente tem o dom de saber ser e feliz e de tradizir a vida nos seus menores e mais significantes sentidos ^^
    obrigaado pelo texto

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